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A língua da solidão

Atualizado: 15 de abr. de 2022

A romancista, ensaísta e cronista baiana Júlia Grilo escreve como a sua amizade epistolar com Laerte, que escreveu a orelha de 'Cães' (Penalux, 2020), acabou moldando-a como autora e ser humano



"Romancista, ensaísta e cronista, Júlia Grilo nasceu em Salvador, no início dos anos 2000. É, porém, a partir da consonância entre o sertão e o recôncavo baiano que encontra os fundamentos de sua literatura: morando em Amélia Rodrigues, deslocava-se a Feira de Santana quase diariamente, do ginásio ao fim do colegial. “(…) No sertão eu costumava estar de passagem, nunca para dormir; meu sono era úmido e abafado, lambido pelo melaço da cana-de-açúcar”. Enredada na cibercultura, aos 10 assimila a linguagem internética e, através da escrita em blogspots, esboça as bases de sua estética, marcada pelo coloquialismo, pela rapidez e, sobretudo, pela ruptura com a anterioridade.


Aos 15, escreve o seu primeiro livro, um ensaio sobre a escola a partir de sua perspectiva estudantil, fazendo uso de estilística tensa, espirituosa e estridente. Este texto, nomeado Perdemos o futuro, é a gênese essencial de seu projeto literário e configura os pilares de sua escrita. Júlia Grilo não se interessa em publicá-lo, no entanto, embora tenha sido convidada para tal. Aos 17, finaliza Deserção, o seu primeiro romance, cuja publicação também não veio a interessar a autora, que encontra em Cães (Penalux, 2020), finalmente, o raiar de sua trajetória no universo da literatura. Atualmente, vive em Salvador, onde se gradua em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia.


Abaixo, Júlia Grilo escreve como a sua amizade epistolar com Laerte, que escreveu a orelha de Cães, acabou moldando-a como autora e ser humano.


Como foi o seu primeiro encontro virtual com Laerte? Quais foram as suas primeiras impressões?


O primeiro e-mail que eu mandei para Laerte, em 22 de fevereiro de 2015, começa assim: 'Oi Laerte, tudo bem? Estive conversando com o Montanaro e ele me disse que seria uma boa ideia mandar um e-mail para você. Como é ter opinar como uma profissão?'. Agora, relendo o que eu escrevi, eu fico um pouco constrangida – não sei de onde tirei tanta coragem. Ela me respondeu no mesmo dia, quatro horas depois, dizendo: 'Você tocou numa grande angústia minha.'


Primeiro fiquei surpresa, depois curiosa: por que? Por que ela me respondeu?


Você já conhecia o trabalho dela como cartunista?


Sim. Acho que o período mais sólido da minha formação estudantil foi o ensino fundamental. Talvez eu nunca volte a ser de novo tão boa aluna quanto fui nos primeiros anos de escola, e não sem espanto eu me dou conta de que levava mais a sério os meus professores escolares do que levo hoje os professores da universidade, que são doutores e leem em vários idiomas. No início do ginásio eu descobri que adorava fazer análise sintática das frases e orações, achava muito divertido, e assim fui me familiarizando com as gramáticas. Conheci Laerte nos livros de português, numa época onde tudo é muito grande, nossos pais são grandes, nossos professores maiores ainda. As coisas que eu via na escola pareciam sempre urgentes e imprescindíveis, e eu sabia que alguém desimportante não apareceria jamais numa gramática. Ainda assim, detestava quando as questões perguntavam 'qual é a crítica do cartum? O que o autor quer dizer?', e eu ficava: sei lá o que o autor quis dizer, não tem como saber, e se tivesse não importaria. Uma vez eu levei isso a sério até demais, e chorei na aula de literatura, porque senti que a minha professora estava corrompendo a essência da arte (risos).


O que fez vocês se darem tão bem, virarem amigas?


Não sei. Já me fiz muito essa pergunta, já levantei muitas hipóteses – e não cheguei a lugar algum.


Eu não estava muito adequada na escola, tinha umas angústias meio precoces, criava problemas que não tinham solução, criava problemas só para não ter solução. Ao mesmo tempo em que estava começando a conhecer o mundo ao meu redor, eu me encontrava, em vários aspectos, entre um lugar e outro, num interstício, um não-lugar. Na literatura, mesmo, eu era esperta demais para os livros adolescentes e boba demais para os clássicos. Para os meninos do colégio que não queriam me namorar, eu era negra, mas na minha cidade de 20 mil e poucos habitantes e um passado escravagista, eu era branca – e a família me chamava de 'morena'. Tinha vontade de ir para outras galáxias enquanto meus pais sequer me deixavam sair de casa. A minha curiosidade me dispunha a um universo que eu podia ver, mas só ver e não tocar, como um cachorrinho vendo frango de televisão. Àquela altura eu ainda não era gente, ainda não tinha instrumentos para lidar com as questões que eu mesma inventava – e também não conseguia me organizar para deixar de inventá-las. Queria muito ser ouvida, participar do mundo dos adultos. Queria muito saber de quem os adultos estavam falando, de quem estavam rindo. Queria o poder. E ninguém me dava, claro.


E eu tinha muito medo de considerar esse meu desajuste, de celebrá-lo, porque tinha medo que achassem que eu gostava muito de mim, que eu me achava extraordinária, que eu queria ser artista. Então passei quase toda a vida tentando compensar o que eu acreditava ser um defeito, uma falha, sem exageros: a descoberta de que eu talvez não precise ser curada é muito recente. Muito recente mesmo, coisa de duas semanas atrás. A maioria das minhas relações esteve mediada por essa vontade compensatória, essa vontade de sumir, mas com Laerte não foi assim. Com ela, eu me sentia menos estrangeira, não precisava fingir. Ela me ouvia, me acolhia como uma semelhante, como se eu importasse. Não sei o que ela viu em mim, e eu sempre achei que a nossa amizade era mais culpa dela do que minha; culpa de sua sensibilidade, de sua generosidade, de sua disposição para o mundo. Não acreditava que ela me achava especial ou algo assim, apenas acreditava que ela era uma pessoa muito legal – e ela é mesmo. Hoje, mais lúcida, eu acho que viramos amigas porque falamos a mesma língua, a língua da solidão.


Você diz que Laerte é a primeira a ler muitos dos seus escritos. De que forma ela te influenciou como escritora?


Desde que comecei a me corresponder com Laerte, os e-mails se tornaram o meu gênero literário favorito. Gosto muito de escrevê-los, é um exercício bem diferente dos outros. São cartas e não são, produzem um espaço confessional e energético; trata-se de uma ambiguidade interessante, e Laerte é a minha destinatária predileta. Isso sem dúvidas ajudou na construção da minha voz autoral. Escrevo para ela como para mais ninguém, porque juntas nós podemos ficar sozinhas.


Com Laerte, eu aprendi tudo sobre ser artista. Dizem que o meio artístico é bastante vaidoso, mas eu aprendi com ela que a arte é uma experiência de alteridade. As anteninhas dela estão sempre ouriçadas, parece, e eu acabei dando sorte de cair em seu radar. Aprendi a impor limites e a não temer as hierarquias, porque eu pensava assim: se Laerte me trata como gente, quem é você para não tratar? Aprendi a não me levar tão a sério, porque nada é tão urgente e às vezes o mundo é engraçadinho. Aprendi a sugerir e a brincar com o vão da incerteza – porque os verbos nem sempre conseguem dar conta de tudo.


Laerte te ajudou no processo de despedida de sua adolescência, como pessoa e escritora?


Eu tinha um medo danado de enlouquecer, de perder a realidade de vista. Acho que o receio de cair em delírio e não conseguir retornar nunca mais é um dos motivadores da minha escrita, da tentativa de acessar o mundo, de assegurar o mundo. Na adolescência eu era muito mais assustada do que sou hoje, e achava que acreditar demais nas minhas ideias me faria louca, me levaria a me perder dentro de mim mesma; achava que a solidez do pensamento seria a premissa de um delírio. E pior: sabia que eu jamais perceberia estar enlouquecendo caso enlouquecesse. Deixei que as contradições me carregassem, então, e essa inquietude várias vezes me levou à mudança, à travessia, mas também várias vezes me paralisou, me deprimiu. Laerte me ensinou a recusar o desespero. Nossa amizade é dialética pura; se eu trago uma tese, ela faz a antítese, e assim sintetizamos. Também ocorre o contrário, da antítese ser minha, e com liberdade vamos versando, o que é muito perigoso, no sentido que Guimarães Rosa dá a ‘perigo’. Essa troca serviu para me mostrar o mundo e garantir que eu não estava louca. Laerte nunca me considerou louca, e quando eu converso com ela eu consigo parar de dar voltas ao redor de mim mesma, consigo me dar conta de como é vão esse meu gosto besta pelo absoluto – que é um gosto bastante adolescente, aliás. Há vezes em que as pessoas conversam só para ficar dizendo, há vezes em que as pessoas conversam e sequer conseguem dizer; várias vezes os diálogos onde eu me enfio são monológicos, beirando a violência, mas a minha relação com Laerte toma o caminho contrário: o que fazemos é pensar conjuntamente, contemporaneamente, e a palavra não nos serve, não é uma ferramenta, mas um meio, um meio para expressar os pensamentos na medida em que eles se elaboram. A guerra me fascina, tenho pensado bastante em seus termos (para um próximo romance, inclusive), mas a hipótese de que o debate é sempre a “guerra por outros meios” me aborrece, a dimensão marcial dos discursos é bastante cansativa. Às vezes fico aflita com a insuficiência do discurso, o que seria de nós sem a linguagem? Estar com Laerte me assegura a potência da linguagem, e por isso eu me sinto menos só. Acho que me enxergar da maneira que ela me enxerga é a maior gentileza que eu posso me fazer.


Ainda é um pouco constrangedor para mim falar publicamente sobre a nossa relação, porque eu sinto que estou fazendo algo que não deveria. Ainda não sei lidar com o público. Laerte fica feliz quando eu falo sobre ela, mas esses dias, no seu aniversário de 70 anos, eu li pela primeira vez uma entrevista que saiu em 2013 pela Piauí e tomei um susto – a Laerte dali é bem diferente da Laerte que eu conheço, não que isso seja um problema. Todo espetáculo existe também nos bastidores.


Vocês são amigas virtuais ou já chegaram a se conhecer pessoalmente? Planejam um encontro futuro?


Eu nunca fui a São Paulo, mas é a primeira coisa que quero fazer ao fim da pandemia. Quero muito encontrá-la, mas a passagem para SP me parece meio mítica. Quando penso em ir para lá, lembro sempre dos tropicalistas, embora eles sejam uma referência cansada, porque eles eram baianos e ambiciosos que nem eu, porque antes de dominarem o Brasil eles estavam aqui do meu ladinho – Amélia Rodrigues era distrito de Santo Amaro. E apesar dos aspectos adolescentes do saudosismo tropicalista, apesar de todo jovem artista da UFBA que tenta emular Caetano (as meninas são Gal, os meninos são Caetano), os baianos da Tropicália fincaram um rastro inquestionável para nós daqui da Bahia – e continuam sendo referências muito grandes, quase mitológicas.


Eu tenho medo igual tenho desejo de ir para lá, que me parece um lugar ao mesmo tempo violento, inóspito e intolerante (mesmo nas bandas de Santa Cecília), e célere, adiantado. Fico com a impressão colonial de que lá todo mundo vai ser mais avançado e mais esperto do que eu. No meio disso, surge a expectativa deslumbrada de que se trata de uma cidade meio woodyalleniana, buliçosa, cheia de coisa simultânea se movendo enquanto a gente passeia pela calçada. São esses contornos do êxodo, acho, e os ecos de uma Salvador portuária, pontual e transitória, feita para exportar. João Gilberto, rigorosamente baiano, foi talvez um dos nossos maiores produtos para exportação. Mas eu não quero ser folclórica; sou o que sou e para além disso não é problema meu – e eu fico aliviada de dizer isso, porque se Laerte não me acha folclórica, quem é você para achar? (Risos)."


 

Este texto foi extraído do site do Opera Mundi e foi publicado originalmente em 9 de abril de 2022. Pode ser acessado aqui.

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